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STF fecha a porteira para a cobrança retroativa do ICMS nas transferências de gado entre fazendas do mesmo produtor
Publicado em 10/09/2025 09:55
Boletim

O debate sobre o ICMS em transferências internas de mercadorias, tão sensível para a atividade pecuária, sobretudo na situação de transferência de gado entre propriedades de um mesmo contribuinte, percorreu quase três décadas até chegar ao desfecho de agosto de 2025. A questão começou com a Súmula 166 do STJ, de 1996, que já firmava: “Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte.” Pouco tempo depois, no entanto, a Lei Kandir (LC nº 87/1996) incluiu, no artigo 12, inciso I, a previsão de incidência do imposto “ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular”.

O conflito entre a súmula e a lei alimentou a controvérsia. Durante anos, os tribunais oscilaram até que, em 2010, o STJ, em recurso repetitivo (REsp 1.125.133/SP, rel. Min. Luiz Fux), consolidou a tese da não incidência. Em 2020, o STF referendou o entendimento no Tema 1.099 de repercussão geral (ARE 1.255.885/MS, rel. Min. Dias Toffoli), afastando a cobrança também nas transferências interestaduais.

A consagração veio em abril de 2021, quando o STF julgou improcedente a ADC 49 e declarou inconstitucional o trecho da Lei Kandir que autorizava a incidência. O acórdão, publicado em maio de 2021, parecia pôr fim ao tema. Contudo, embargos de declaração levaram à modulação dos efeitos em setembro de 2023, ocasião em que se fixou o entendimento pela não incidência apenas a partir de 2024, protegendo retroativamente apenas os contribuintes que já tinham ações ou processos administrativos até 29/04/2021.

A expectativa da Corte, ao fixar tal modulação, nos termos do voto condutor do Ministro Edson Fachin, foi evitar “o comprometimento das finanças dos Estados” e “conservar situações já consolidadas no tempo”, assegurando “certo equilíbrio na relação entre Fisco e contribuinte, pondo obstáculos às pretensões de ambos os lados”. Destaca-se:

(...) A modulação tal como proposta, por um lado, evita o comprometimento das finanças dos Estados, que já vivenciam uma grave crise fiscal e econômica. Por outro lado, a ressalva atende ao princípio da segurança jurídica, conservando situações já consolidadas no tempo e assegura certo equilíbrio na relação entre o Fisco e o contribuinte, pondo obstáculos às pretensões de ambos os lados.”  

Contudo, na prática, aqui nasceu o problema. A redação da modulação foi confusa e criou uma zona cinzenta que afetou especialmente aqueles que, entre 2021 e 2023, confiaram na decisão e judicializaram a questão posteriormente ou, simplesmente, não ingressaram com medidas por confiarem na jurisprudência de quase 30 (trinta) anos majoritariamente favorável aos contribuintes.

Essa lacuna abriu margem para uma leitura oportunista, de modo que alguns Estados passaram a interpretar que poderiam lavrar novos autos de infração sobre transferências pretéritas, como se a modulação tivesse “ressuscitado” uma competência já declarada inconstitucional.

Essa leitura oportunista da modulação acabou sendo amplificada pelas Fazendas estaduais, que passaram a lavrar, de forma açodada, autos de infração contra contribuintes que apenas haviam seguido a jurisprudência pacífica até então consolidada. Exemplo eloquente é o recentíssimo julgamento do AIIM nº 4.151.658-8, apreciado em 21/08/2025 pelo Tribunal de Impostos e Taxas da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo:

“(...) Pois bem. Por meio da modulação na ADC, o STF decidiu que o entendimento vale a partir do exercício financeiro de 2024, excepcionadas as empresas que possuíam processos administrativos e judiciais pendentes de conclusão até a data de publicação da ata de julgamento da decisão de mérito da ADC 49 (29/4/2021). Como este AIIM foi lavrado em 03.01.2023, as operações de transferências não estão contempladas pela modulação do STF. Desprovejo o apelo nessa parte, ficando mantida a decisão de primeiro grau (...)”

Em Mato Grosso, a Secretaria de Fazenda passou a expedir notificações de “autorregularização”, cobrando ICMS de transferências de gado realizadas em exercícios anteriores e deixando subentendida a ameaça de autuações formais com multas e juros. A pressão alcançou inclusive produtores rurais que haviam obtido liminares ou sentenças favoráveis entre 2021 e 2023, muitos dos quais acabaram cedendo e efetuando o pagamento por temor das consequências. Ilustra bem esse movimento a Resposta à Consulta nº 083/2023, emitida pelo Órgão Consultivo da SEFA/MT em 20/09/2023:

“(...) Por fim, ante o exposto, em resposta ao questionamento apresentado pela consulente, tem-se a informar que as operações de transferência de mercadoria para estabelecimento filial da empresa continuam sujeitas à tributação do ICMS.
Portanto, as notas fiscais de saídas de mercadoria devem ser emitidas com destaque do imposto, mantido o tratamento tributário na forma da legislação estadual até a data de 31/12/2023, conforme modulação de efeitos pelo STF em decisão proferida nos Embargos de Declaração da ADC 49/2021, datada de 19/04/2023. (...)”

Foi apenas em 2025 que surgiu a oportunidade de “corrigir” a modulação fixada no julgamento da ADC 49, por meio do Tema nº 1.367, ao qual o Supremo Tribunal Federal reconheceu repercussão geral.

A questão chegou à Corte em recurso extraordinário interposto pelo Estado de São Paulo contra acórdão do TJSP que afastara a incidência do ICMS sobre transferências interestaduais entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, sem observar, contudo, os limites temporais definidos na modulação da ADC 49. Na manifestação em que propôs a afetação, o ministro Luís Roberto Barroso ressaltou que o STF já havia declarado inconstitucional o artigo 12, inciso I, da Lei Kandir, mas, por razões de segurança jurídica e de equilíbrio do federalismo fiscal, atribuíra eficácia prospectiva à decisão apenas a partir de 2024, ressalvados os processos administrativos e judiciais em curso até 29 de abril de 2021. Por isso, concluiu que o acórdão paulista, ao estender a não incidência também a operações pretéritas sem processo pendente, afrontava a autoridade do STF e desconsiderava a modulação definida nos embargos de declaração. Diante da relevância constitucional da controvérsia e da multiplicidade de processos idênticos, propôs a submissão da matéria ao regime de repercussão geral.

O descompasso atingiu seu auge em fevereiro de 2025, quando um voto do ministro Luís Roberto Barroso, no próprio Tema 1.367, reforçou a interpretação restritiva da modulação, posição à qual aderiram os ministros Alexandre de Moraes e Cármen Lúcia.

O cenário, por sorte, se inverteu em 22 de agosto de 2025, quando se formou maioria em torno do voto divergente do ministro Dias Toffoli, ocasião em que o STF julgou definitivamente o mérito do Tema 1.367. O entendimento prevalecente fixou que a modulação da ADC 49 não autoriza a cobrança retroativa do ICMS. Restou assentado, de forma inequívoca, que os Fiscos estaduais não podem exigir o imposto sobre transferências ocorridas antes de 2024, inclusive em relação a contribuintes que ingressaram em juízo apenas após abril de 2021 ou que chegaram a ser autuados no período. A Corte deixou claro que a finalidade da modulação era apenas garantir uma transição ordenada no sistema, jamais criar uma “janela arrecadatória” em favor dos Estados.

A decisão trouxe alívio imediato. Quem recebeu notificações pode agora responder com base na jurisprudência do STF e exigir o cancelamento. Quem pagou sob pressão tem o direito de pleitear a restituição. E quem foi autuado encontra, na decisão, uma defesa robusta.

O desfecho, embora positivo, deixa lições amargas. Quando o STF modula suas decisões de forma ambígua, abre espaço para interpretações que nunca deveriam ter prosperado; e Estados como Mato Grosso e São Paulo erraram ao explorar a confusão para arrecadar. O mérito sempre foi no sentido de que, sem mudança de titularidade, não há ICMS. No contexto da pecuária, a metáfora é simples: o boi continua sendo do mesmo dono, apenas mudou de pasto.

O julgamento de agosto de 2025 fecha a porteira da cobrança retroativa, mas não devolve a tranquilidade perdida nem o tempo gasto pelos contribuintes em suas defesas. No fim, a lição é clara: segurança jurídica não é luxo, é insumo essencial para quem produz.

 

Pedro Henrique de Marco é advogado no Lavez Coutinho, especialista em Direito Tributário pela PUC-SP, com extensão em Tributação do Agronegócio pela Universidade de São Paulo (USP) – Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP)

Fonte:

 Pedro Henrique de Marco

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